Psicólogos, médicos e dentistas estão entre os profissionais da saúde que têm a hipnose como uma técnica regulamentada no país, representando um recurso complementar às terapias convencionais de cada especialidade. No entanto, ainda hoje são raras as discussões acadêmicas sobre hipnose no Brasil, e a noção que se tem sobre seu uso ainda é muito pouco científica, ao contrário do que já ocorre em outros lugares. É dessa lacuna e do entusiasmo de um professor e de um pós-graduando que o tema passou a fazer parte das atividades do Instituto de Psicologia (IP) da USP.
“Até então ninguém havia trabalhado de maneira sistemática com hipnose aqui. Começamos com uma disciplina na pós-graduação, que foi uma espécie de balão de ensaio para outra disciplina que propusemos em seguida, na graduação”, conta o professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do IP, Wellington Zangari. Na graduação, como disciplina eletiva, estão matriculados alunos de diversas unidades, de cursos como história, engenharia e farmácia.
O interesse de alunos e pesquisadores de outras áreas, além da psicologia, se revelou também no Grupo de Estudos de Hipnose e Estados Alterados de Consciência (GEHIP), criado por Zangari junto ao psicólogo Guilherme Raggi, seu orientando de mestrado, em 2014. Inicialmente, o objetivo foi agrupar pessoas que queriam se aprofundar no estudo da hipnose, que passaram a levantar a literatura da área e selecionar temas de interesse. “Agora estamos começando um segundo momento, que é a transformação do grupo de estudos em um grupo de pesquisa”, afirma Raggi.
A ideia, segundo os idealizadores, é formular propostas de ação prática, com projetos que envolvam pesquisa e serviço. “Uma das possibilidades é utilizar algum dos serviços que já existem na USP, acrescentando a hipnose ao tratamento. Por exemplo, em programas de tabagismo, podemos oferecer a hipnose como algo complementar ao tratamento convencional, e observar as diferenças nos resultados”, comenta o professor Zangari. A hipnose, segundo os pesquisadores, mostra maior eficácia quando é somada às terapias já conhecidas, potencializando seus efeitos.
Uso terapêutico
Um dos usos mais conhecidos da hipnose é no controle da dor, indicada, assim, para procedimentos obstétricos e ginecológicos, dores agudas e crônicas, recuperação pós-cirúrgica, entre outros. Por reduzir o consumo de anestésicos e analgésicos, a hipnose proporciona redução dos efeitos colaterais de medicamentos, diminuindo custos e tempo de recuperação dos pacientes. “São muitos os benefícios e, por isso, muitos sistemas públicos de saúde pelo mundo adotaram a hipnose como técnica”, afirma Wellington Zangari. “Um outro passo que queremos dar, futuramente, é oferecer um curso aberto a profissionais de saúde que buscam o aprimoramento na área”, adianta.
O coordenador do GEHIP alerta para os riscos do uso irresponsável da técnica por pessoas cuja formação – que no país, é oferecida ainda de modo bastante informal – não envolve a reflexão ética. No caso dos psicólogos e demais profissionais da saúde, a conduta ética é regulada por organismos de classe, mas a prática da hipnose é livre e acessível a qualquer pessoa. A hipnose em si, explica, não é danosa, mas o uso terapêutico dela pode ser problemático.
Os pesquisadores lembram de diversos casos em que a hipnose, ao ser utilizada para tentar recuperar lembranças antigas, acabou gerando falsas memórias. “Nos anos 80, nos Estados Unidos, houve vários episódios de pessoas que se lembravam de abusos na infância, o que acabou levando a processos e à destruição de famílias e, depois, aquilo acabava se provando falso”, conta o estudante de mestrado Guilherme Raggi. A indução de memórias, mesmo não intencional, ocorre pois quando hipnotizadas, as pessoas tem um aumento na imaginação e na fantasia e estão altamente sugestionáveis. “A forma como alguém faz uma pergunta pode fazer você se lembrar de algo de modo diferente”, esclarece.
Suscetibilidade e sugestão
Algumas pessoas são mais suscetíveis à hipnose do que outras. Não se sabe exatamente o porquê, mas essa característica é muito semelhante às demais características humanas, representando um traço da pessoa, assim como a timidez ou o talento para a música. Em seu mestrado, Raggi vem trabalhando na tradução e adaptação para o contexto brasileiro da Escala de Suscetibilidade Hipnótica de Stanford.
A proposta é começar a aplicar esta escala em pessoas de São Paulo, para estabelecer quão hipnotizáveis elas são. “Seria interessante realizar uma rede com outras universidades para fazer uma validação em nível nacional. Outros países já fazem isso. É vanjoso medir essa característica ao aplicar o procedimento para uso terapêutico, por exemplo”, afirma o pós-graduando.
Orientador do estudo, o professor Zangari comenta o uso da hipnose em pessoas que têm reações alérgicas à anestesia. Ele relata ter participado de uma cirurgia odontológica em que o paciente, que corria o risco de sofrer anafilaxia, foi hipnotizado para extração de um dente. O procedimento aconteceu sem dor, e o sangramento foi controlado a partir dos comandos e sugestões dadas pelo pesquisador. Em casos assim, conhecer o “traço hipnológico” da pessoa é importante para saber quão eficaz pode ser a aplicação da hipnose.
“Lembrando que hipnose é o nome que damos para esse processo em um ambiente controlado, com objetivos claros, mas a sugestão acontece também fora do território da hipnose”, relata Zangari. Quando uma mãe beija a ferida da criança para aliviar a dor, ocorre também esse processo de comunicação baseado na expectativa, na sugestão, exemplifica. O efeito placebo é outro exemplo que desperta a curiosidade dos pesquisadores.
Grupo de Estudos de Hipnose é um dos subgrupos que compõem o Inter Psi, Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais, que busca entender fenômenos sem consenso científico, caso de experiências fora do corpo, previsão do futuro ou sonhos lúcidos. “São experiências que muitas pessoas narram, mas que a psicologia demorou um bom tempo para começar a ouvir e tentar compreender as razões”, afirma Zangari. “Como tudo na psicologia, é um campo cheio de controvérsias”, conclui Raggi.
Editoria: Comportamento, USP Online Destaque – Autor: Aline Naoe